27 de out. de 2009

O lutador

A luta de Jacó com o anjo -Alexander Louis Leloir, 1865

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.
Lutar com palavras

é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como um javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito foge
me não há ameaça
e nem há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.
.
Insisto, solerte.

Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssima
se viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue…
Entretanto, luto.
.
Palavra, palavra

(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.
.
Luto corpo a corpo,

luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.
.
Iludo-me às vezes,

pressinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
aquela sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas ai! é o instante
de entre
abrir os olhos:
entre beijo e boca,
tudo se evapora.
.
O ciclo do dia

ora se conclui e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.
.
Carlos Drummond de Andrade - Nova Reunião, p. 94-97

4 comentários:

Jenny Horta disse...

Sem dúvida este é um dos mais belos poemas que já li. E neste momento de minha vida, rele-lo parece imprescindível.
Palavras...como podem ser antagônicas
Obrigada pela oportunidade de reler este poema!

Dalva M. Ferreira disse...

Tinha que ser do velho... obrigada por me mostrar o rumo das coisas, Leonor.

angela disse...

Falar o que?
beijos

Madalena Barranco disse...

Olá Leonor querida!!

Que belo poema do Carlos Drummond! Onde a luta se transfere para o papel e acontece entre as mentes brilhantes.

Beijos.